CAMAIURÁS/KAMAIURÁS – Os camaiurás constituem uma etnia indígena brasileira. Habitantes do Parque Indígena do Xingu, às margens da zona de confluência entre dois importantes rios da Microbacia Xinguana, os camaiurás pertencem ao grupo étnico e linguístico tupi-guarani, estando inseridos na zona cultural do Alto Xingu.
Os camaiurás (também conhecidos como kamaiurás ou kamayurás) constituem a etnia indígena brasileira.
Os camaiurás possuem um sistema tradicional caracterizado pela heterogeneidade, fruto do intenso processo de matrimônio intertribal e dos enérgicos laços de coesão que mantêm com outras sociedades indígenas do mesmo espaço geográfico.
Entre os indígenas do grupo, vigora um sistema de organização civil peculiar, caracterizado por um único complexo de imensas ocas comunitárias circularmente dispostas ao redor de um terreiro público.
Tal espaço, formado a partir da convergência de quatro vias principais, destina-se à celebração dos ritos e tradições referentes à cosmologia do povo.
As habitações, primordialmente constituídas por taquaras e palha, podem chegar a trinta metros de comprimento e abrigar várias famílias, segundo a ancestralidade que possuam.
A Sociedade, embora rigidamente patriarcal, não menospreza o papel feminino, encarregando as mulheres da tutela dos filhos, manutenção da ordem doméstica, plantio e colheita das raízes comestíveis e preparação dos alimentos, enquanto compete ao homem a obtenção proteica e a limpeza da roça na qual será plantada a mandioca.
Localização – À altura do primeiro contato não indígena, liderado pelo etnólogo alemão Karl von den Steinen, em 1886, os camaiurás encontravam-se em estágio final de sedentarização, assentados nas proximidades da Lagoa de Ipavu, onde permanecem até hoje.
Segundo relatos tradicionais, amplamente aceitos entre os indígenas, o povo viria do Wawitsa, localizado na zona mais setentrional do parque.
A região, onde desembocam os principais afluentes da bacia do Xingu, possui espaço de destaque na cosmologia do grupo étnico.
Organização Física – As estruturas habitacionais camaiurás, possuem influências insignes do estilo arquitetônico alto xinguano, podendo atingir até trinta metros de extensão e dez metros de altura. Com uma estrutura de madeira e taquaras majoritariamente revestidas de sapê ou folhas de palmeira, as ocas gozam de estatuto coletivo, não apresentando quaisquer tipos de divisões internas.
Marginalmente ao centro da habitação, de onde se projeta uma única coluna de madeira, aglomeram-se as famílias do clã, enquanto que os ambientes mais internos são destinados à estocagem do alimento e à manutenção da fogueira.
A aldeia, por sua vez, constitui um único núcleo de povoamento, formada de uma praça (na língua camaiurás, hoka’yterip) central em cujo entorno se erguem as palhoças, numa distribuição circular.
Nuclear à hoka’yterip, ergue-se a casa das flautas, onde se acondicionam as flautas utilizadas em rituais xamânicos.
O acesso a tal estrutura, bem como a utilização das flautas, é restrito aos homens da aldeia, imputando-se, às mulheres que descumprem tal proibição, a pena de estupro coletivo.
Hábitos culturais – A admissão do jovem indígena na atmosfera adulta exige um período de clausura assistida, que, geralmente, inicia-se em virtude dos primeiros caracteres da puberdade.
Durante o ciclo, os adolescentes são isolados numa estrutura habitacional específica, onde têm o contato social restrito à presença dos pais e avós.
Os que guardam tal parentesco, responsabilizam-se pela instrução produtiva do indígena, dando ênfase especial às atividades referentes ao sexo do adolescente e o modo de realizá-las.
À ocasião, os garotos são educados sobre a prática do huka-huka, uma arte marcial ritualística frequentemente associada às festividades cosmológicas do povo.
Embora, para as adolescentes, o início da reclusão esteja rigidamente relacionado à menstruação, para os entes masculinos requer o consenso mútuo entre seus pais. O processo de instrução prolonga-se por tempo indeterminado e, não obstante a permanência feminina raramente se estender por muito mais de um ano, os garotos podem ficar enclausurados por períodos até cinco vezes maiores, intercalados por breves acessos à liberdade.
Durante a ocasião, as garotas têm seus joelhos amarrados por cordas fibrosas, de forma que a panturrilha se torne mais robusta pelo acúmulo de líquidos.
De igual modo, são privadas de cortar o cabelo, fazendo com que, ao fim do rito, as longas madeixas da franja encubram parte de suas faces. Assim que a extensão capilar das adolescentes atinge a altura do queixo, estas são liberadas da clausura.
A duração média do rito se relaciona ao status hereditário que acompanha o jovem, de forma que um maior espaço recluso implica, proporcionalmente, num maior poder e importância entre os indígenas da aldeia. Ao fim da clausura, é dado um nome definitivo ao jovem, que vem a substituir o nome que recebeu em virtude do seu nascimento. O período marca, de mesmo modo, a aptidão aos ritos matrimoniais.
Preenchendo um espaço cultural notável, o infanticídio é, frequentemente, associado ao sistema cultural do povo, embora os camaiurás não possuam exclusividade na realização da prática.
Os filhos de mãe solteira, possuidores de malformação congênita e gêmeos, são os principais alvos deste ritual, que, embora seja bastante enraizado no contexto das tradições do povo, gera divergências entre os próprios membros da aldeia.
Os indígenas recém-nascidos, ao enquadrarem-se em qualquer dos motivos supracitados, são, geralmente, soterrados ainda vivos, embora também possam ser executados por afogamento.
Atualmente, algo em torno de trinta crianças indígenas são mortas pelos camaiurás todos os anos, não obstante a Fundação Nacional do Índio oferecer serviços de adoção das crianças rejeitadas.
Jogos e atividades lúdicas – O repertório lúdico dos indígenas camaiurás, caracterizado pela insigne diversidade de expressões performativas, apresenta-se sob a forma de brincadeiras e de jogos que gozam de notável popularidade entre os integrantes do grupo. Tais atividades, especialmente praticadas pelas crianças e homens da tribo, perfazem parte importante da vida cotidiana do povo, podendo, casualmente, envolver instrumentos específicos ao fim.
Alguns destes utensílios apresentam mecanismos singulares, a exemplo de um curioso brinquedo infantil que, produzido a partir de taquaras e fios de juta, atira um frágil jato d’água sob pressão.
Mojarutap Myrytsiowit: a brincadeira da cama de gato, como é conhecida em português, consiste na produção de figuras diversas utilizando-se de dois cordões fibrosos enrolados entre os dedos. As formas resultantes, geralmente geométricas ou antropomórficas, constituem um dos mais notáveis exemplos de produção criativa dos camaiurás, possuindo clara influência da cosmologia tradicional do povo.
Jawari: usando uma espécie de zarabatana especialmente produzida para este fim, um grupo de competidores lança artefatos pontudos em direção a uma cerca de varas previamente organizadas. Detrás da cerca, enfileiram-se os demais brincantes, de forma que a cerca funcione como escudo contra as lanças arremessadas pelos competidores. À medida em que as lanças atingem os paus, que formam uma parede pouco firme, os índios que estavam originalmente atrás desta parede devem desviar-se das setas, sem, contudo, moverem os pés.
Sociedade – A sociedade camaiurás organiza-se em hierarquias estamentárias bem definidas, caracterizadas pelo forte patriarcalismo e, geralmente, transmitidas pela hereditariedade.
O chefe tribal, o ‘’Cacique’’, representa o status máximo atingível dentro dos limites da aldeia, servindo aos papéis de mediador e regulador de conflitos entre os demais indígenas.
O Pajé encarregado dos ritos xamânicos, por sua vez, concentra poderes políticos minimizados, não obstante traga consigo grande prestígio e apreço entre os integrantes da tribo.
Em certos casos, um único indígena pode concentrar poderes místicos e políticos, o que aumenta ainda mais o renome do indivíduo.
Habitam em ocas familiares, que, usualmente, orbitam em torno de um grupo de irmãos que podem ou não estarem acompanhados por primos e ascendentes paralelos. O líder do espaço doméstico, conhecido como dono da casa (em camaiurás, morerekwat), é o encarregado da distribuição dos afazeres cotidianos entre os clãs satélites.
Existe, entre os integrantes da aldeia, uma forte tradição poligâmica, de modo que um elevado número de esposas indica, proporcionalmente, um maior status social.
Do marido, a aquisição de uma nova esposa exige, além da possibilidade de mantê-las em condições confortáveis, a permissão das já existentes.
Tradicionalmente, os jovens recém-casados devem residir por um período preestabelecido de tempo junto aos sogros, realizando favores em agradecimento à cessão da filha. Cumprido o acordo, o casal pode escolher em qual residência vai se estabelecer, residência esta que, em geral, é a casa de origem do marido.
“Criação do Mundo’’, segundo a cosmologia camaiurás: Podemos saber como a humanidade foi criada, nos reportando à mitologia, que é o conjunto de narrativas que sintetizam, de modo exemplar, os principais marcos da tradição indígena. Segundo consta, há muito tempo o mundo era bastante parecido com o que é hoje, com a mata, as águas, os bichos, as aves, os peixes e outras inúmeras formas de vida, exceto a humana. Mavutsinin, o primeiro, que tem a mesma idade do universo e se criou a si próprio, enamorou-se de uma concha e com ela teve um filho […]
Nessa época, o relacionamento entre os seres era estreito. Casavam-se, selavam amizade e aliança ou entravam em conflito e brigas. O próprio filho de Mavutsinin, que trazia o mesmo nome do pai, depois de ameaças e atritos com a onça tornou-se seu sogro, dando, a ela, suas duas filhas em casamento. Dessa importante união, nasceram os dois meninos gêmeos: Sol (Kwat) e Lua (lay). – Carmen Junqueira em: Os índios de Ipavu.
Grande parte da tradição cosmológica dos indígenas camaiurás, orbita em torno de uma única deidade, conhecida como Mawutzinin. O ser, também creditado como o Demiurgo e primeiro ser humano a habitar a terra, teria sido o responsável pela introdução da festa do Quarup, do uso dos arcos e do consumo de elementos importantes da dieta do povo.
Mesmo detentor da essência divina, e considerado a matéria primária da criação, Mawutzinin deixou-a logo após, para que seguisse seu rumo próprio, sem que houvesse maiores intervenções vindas de sua parte. Contrariamente à maioria das tradições ocidentais, não se admite, na religião camaiurás, um comércio ou comunicação pessoal com Deus sob forma de preces ou invocações.
De modo semelhante, os indígenas camaiurás creem na existência de um tipo específico de potência abstrata, usualmente conhecida como mamaé.
O mamaé, presente em diversas classes de seres ou objetos, consiste numa espécie invulgar de força espiritual, classificada, segundo sua natureza, como benéfica e generosa, ou, de maneira oposta, malévola e nociva em diversos níveis.
Segundo a crença, a ingestão ou o contato prolongado com certa entidade de mamaé nocivo acarretaria ao indígena diversos males físicos, tratáveis apenas mediante rituais xamânicos. Tal conceito age como um dos principais agentes reguladores da dieta étnica do povo.
Tradicionalmente oral, a continuidade da tradição religiosa é resguardada aos estamentos mais idosos da sociedade, especialmente devido ao fato de serem estes os principais detentores dos contos rituais e cosmológicos da cultura do povo. Dentre os relatos míticos, a criação do mundo e da organização social da etnia possuem os valores culturais mais insignes, sendo considerados imprescindíveis para a manutenção do estilo de vida original do grupo.
Vida pós-morte – Independente de suas ações em vida, após a morte, as almas dos indivíduos seriam levadas a uma aldeia celeste, réplica da aldeia terrena. Após a morte, não seria mais necessário se realizar qualquer tipo de trabalho, pois os indígenas sempre se apresentariam enfeitados, podendo dançar e comer a todo tempo. A alimentação, neste plano espiritual, seria composta, majoritariamente, por grilos e batatas, ao invés do beiju e o peixe correntes entre os indígenas vivos.
Contudo, embora indistinta quanto às atitudes humanas, o acesso a tal aldeia espiritual exigiria o enterro do defunto seguindo normas rígidas de pintura e acessórios, para que, desta forma, permanecesse por toda a eternidade. Periodicamente, pássaros malignos sobrevoariam a aldeia celeste, na tentativa de arrancar pedaços do corpo do indivíduo e levá-los a um gavião. Por tal, os camaiurás munem, pouco antes dos ritos fúnebres, os desfalecidos com armas, de maneira que possam se defender. As almas desprovidas de armamento seriam mortas, findando sua existência.
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