Sapoti levava uma vida sossegada. Não tinha muito com o que se preocupar. Partia da crença que sempre teria à disposição tudo o que lhe foi oferecido até ali: casa, comida, saúde, dinheiro …
Trabalhava na loja da mãe, vendendo produtos femininos trazidos de fora do estado ou do país. Não se preocupava em estudar, pois sempre teve a segurança de uma vida
confortável. Acreditava que estava sendo preparada para assumir o “império” que lhe cercava.
Um dia, percebeu seu pai num misto de aborrecimento e preocupação. Ele gritava do seu quarto, a portas trancadas. Apesar do fato ter chamado sua atenção, ela tinha um encontro com “azamigas”, pegou seu carro e #partiu. No tal encontro, falou sobre os “crushs” e sobre a bolsa nova da Gertrudes (sua melhor amiga). Ela queria uma igual ou até melhor. Pediria um exemplar à sua mãe no dia seguinte.
Ao acordar, sentiu falta do iogurte com canela. Chegou a brigar com a empregada da casa pela falta dos ingredientes. Joanita (a serviçal), num rompante, disse a ela para reclamar aos pais. Sem entender ou ligar, saiu para mais um dia em sua linda loja.
Ao chegar lá, percebeu sua mãe calada, triste. Ao lhe questionar o que havia acontecido, recebeu a seguinte assertiva: “Você não está vendo? Há meses, o movimento vem
caindo, não sei mais o que fazer para atrair clientes!”.
Sua resposta foi invasiva aos ouvidos da genitora: “Relaxa, mãe, essa mulherada daqui a pouco aparece. Não crisa! Ah, mãe, ontem a Gertrudes estava com uma bolsa liiiiiinda, compra pra mim, compra, pleeeassee!”
Ao longo de um mês, Sapoti viu as coisas mudarem rapidamente, para pior. O iogurte da garrafinha, que custa R$ 20,00 (vinte reais) nos supermercados locais,
deixou de ser comprado. Sua mãe não lhe dera a bolsa. Joanita ganhou férias (provavelmente, nem voltaria). Seu pai, sorumbático, passava mais tempo em casa. Ela acreditou (ou preferiu assim) que ele também estava de férias. Mas Sapoti só sabia fazer uma coisa: reclamar pelos incômodos que estava passando. Gritava “inferno, inferno” cada vez que sua mãe lhe mandava arrumar seu quarto ou quando lhe negava grana para sair com a Gertrudes.
O pai era executivo de uma indústria instalada na cidade. Sapoti não percebeu, ou melhor, não leu os jornais locais, que indicavam o fechamento da empresa. Seu pai não estava de férias, estava desempregado, tentando arrumar outra colocação em seu “tempo livre”. Fora as reclamações tolas, nada abalava a Sapoti, que permanecia alheia a sua realidade. Até que um dia, seus pais abriram o jogo: “estamos sem dinheiro, perdi meu emprego, sua mãe está devendo a fornecedores, nunca passamos por isso antes. Precisamos que você nos ajude, que procure emprego em outro lugar, nem que seja para sustentar sua rotina.”
Meio atônita, Sapoti não sabia o que responder, nem como agir. Mas teve um insight: “Ah, vou pedir emprego ao pai da Gertrudes. Ele é político e vai “bacanizar”!” Emprego negado, o Tio já tinha uma fileira de pedidos idênticos.
O contexto lhe trouxe uma reflexão: “Afinal, o que havia acontecido ‘de repente’?” Sapoti não se dera conta da crise pela qual passava sua cidade: as empresas estavam
fechando, muitas pessoas voltando para seus estados de origem, desemprego em massa… Uma cidade agitada passou a ter ares de marasmo e abandono.
Aí, pergunto a vocês: Qual é a relação entre a história da Sapoti e parte do povo de Manaus?
Nossa cidade pujante cresceu por força de um modelo de beneficiamento econômico às empresas que aqui se instalaram: elas pagam menos tributos que o restante do país. Já tivemos a fase do comércio e, há algumas décadas, migramos para o fortalecimento da indústria local.
A justificativa desse beneficiamento diz respeito a um preceito da nossa Constituição: o equilíbrio econômico regional.
Até aqui, assim como a vida de Sapoti, tudo deu certo: o comércio, o Poder Público e os serviços manauaras todos estão em movimento porque temos um Polo Industrial. É bobagem acreditar que sem ele teríamos a mesma força.
Ao longo dos anos, esse modelo sofreu ataques de poderosas regiões brasileiras, que não compreendem a concentração de tantas empresas num lugar ermo e desconhecido pela maioria da população do país.
Afinal, pensam eles, essas empresas deveriam estar onde tudo acontece: o CentroSul, que concentra a maioria dos brasileiros, que precisam de mais empregos, que demandam muitos investimentos em saúde, educação, infraestrutura etc. Para eles, em resumo, o resto do Brasil sustenta a Zona Franca de Manaus (ZFM) com seus incentivos e, por consequência, a cidade e o próprio Amazonas.
Se o modelo foi mantido ileso, deu-se em razão dos políticos locais e dos favores que precisaram fazer. Mas até quando isso será factível?
O governo federal passado atacou a ZFM com o IPI. O atual, apesar de se dizer amigo da nossa operação, parece ser mais contundente quanto ao fim paulatino dos seus benefícios.
Em pauta, uma Reforma Tributária que vem sendo batalhada pelo Executivo Federal.
O principal projeto foi concebido por um economista paulista, crítico ferrenho da ZFM e integrante do atual Ministério da Fazenda, que coordena a pasta da citada Reforma.
Muitos manauaras partem da crença, assim como a sossegada vida de Sapoti, que a ZFM é intocável e que os nossos políticos, como os pais da moçoila, darão um jeito de resolver mais esta ameaça.
Será, meu povo? Será que o “discurso equilibrista” (ou seja, da economia regional) terá fôlego por muito mais tempo? Será que as críticas pelo que deixou de ser feito
(investimentos, desenvolvimento de outras matrizes econômicas, infraestrutura) já não superam a análise crítica sobre as benesses alcançadas (o crescimento desordenado de Manaus e o constante abandono do interior)?
A verdade é que Manaus e o Amazonas precisam saber desenvolver suas próprias vocações, enquanto suas economias não podem ser tão dependentes da política. Do contrário, todos nós estaremos sujeitos às recorrentes ameaças das regiões que tem o poder nas mãos (traduzido, aqui, em capital político).
Será que parte do povo amazonense e do manauara, assim como a Sapoti, não devem tomar conta de sua realidade, ao invés de se manter no cômodo transtorno de despersonalização ou desrealização¹?
Sem a ZFM, a maioria dos manauaras estarão sujeitos à depreciação econômica da personagem Sapoti. E isso não será de repente. Há anos, não há uma verdadeira preocupação quanto à mudança da nossa matriz econômica. Existem iniciativas, tímidas, nada que possa substituir, em tempo curto, a receita financeira que o Polo Industrial de Manaus traz a todo estado.
É por isso que você, dependente da economia amazonense, precisa acordar do sonho pela perpetuidade da Zona Franca de Manaus, e começar a exigir dos nossos representantes a consecução de políticas econômicas viáveis à região, harmônicas ao desenvolvimento do restante do país.
Em paralelo, muito se diz que a Reforma Tributária não passará, mas a verdade é que ninguém pode ter esta certeza.
Se passar, a ZFM estará sim sob nova e séria ameaça. Talvez a pior das últimas décadas. E o que nos restará serão migalhas da União, traduzidas em fundos compensatórios ou de desenvolvimento por prazo certo, os quais, por si só, não garantirão emprego e tampouco renda à população de Manaus ou do Estado.
¹Despersonalização ou desrealização é o transtorno de quem vive um mundo alheio à realidade.
É possível até que, ao final do prazo desses fundos, nossos representantes pleiteiem sua continuação, ainda sob a justificativa equilibrista, mas com nova roupagem.
Acordem, pensem e pleiteiem que o nosso estado passe a ter um caminho próprio.
Não esperem o mesmo destino da Sapoti.
O Amazonas é único, em vários aspectos, e dessa diferença poderá encontrar a solidez de sua economia de forma sustentável.
Pedro Câmara Junior é Graduado em Direito pela UFAM. Pósgraduado em Direito Civil pela UFAM. Pós-graduado em Direito
Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Pós-graduado pela
NOVA School of Business and Economics (Portugal) em Pensamento
Disruptivo e Inovação. Certificado pelo Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa – IBGC no curso de Formação de
Conselheiros de Administração de empresas. Advogado atuante nas
áreas de Direito Societário, Tributário e Administrativo desde março de
1998. Membro da Associação Comercial do Amazonas
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